Cuidar de quem cuida
29 de agosto de 2025
29 de agosto de 2025
Uma mulher chega em casa diariamente exausta. Cumpriu horas de uma jornada exaustiva, trabalhando como empregada doméstica na casa de uma família que não é a sua. Ao pisar em seu lar, não descansa: inicia a segunda jornada — os cuidados com os filhos, a alimentação, a organização do espaço, as urgências de todos. Seu companheiro, de comportamento tranquilo, é carinhoso. Mas ela é quem concentra todas as energias no bem-estar da casa. Ao tempo, surgem o ciúme, a possessividade, o controle. Até que, ao voltar do serviço, acompanhada dos filhos, após uma discussão, tem o corpo encharcado com solvente e, em seguida, perfurado por facadas. Foi o então ex-companheiro. Uma violência gravíssima que a deixou desfigurada e por pouco não a matou. Ele foi preso. Alegou, como tantos agressores, ciúmes. Essa é Marciane, mulher preta capixaba, hoje viva e incansável na luta contra a violência que sofreu.
Ela representa milhões de mulheres brasileiras que conciliam o trabalho formal, os afazeres domésticos e o cuidado com a família — e que, apesar de assumirem tantas frentes, seguem invisíveis para o Estado. Como é possível que quem cuida de todos não tenha garantido o direito de ser cuidada?
A raiz do problema é estrutural: homens com uma masculinidade vil, que naturalizam o domínio e a violência. Nosso Estado não se move por quem mais precisa. Em todo o mundo, as mulheres realizam 76,2% dos trabalhos de cuidado não remunerado, gastando 3,2 vezes mais tempo que os homens nessas tarefas de sustentação da vida (OIT). No Brasil, o cenário se agrava quando o fator racial se soma ao de gênero. As mulheres negras são as que mais trabalham e as que menos descansam, sem a devida atenção consigo.
O reconhecimento do cuidado como direito está profundamente vinculado à autonomia pessoal, ao desenvolvimento de projetos de vida e a uma existência digna, sem distinção de gênero, raça ou origem social. Não é possível separar essas questões. E a ausência de dados desagregados por gênero e raça compromete a criação de políticas públicas eficazes para redistribuir o cuidado. Sem dados, não há visibilidade, tampouco ação.
Mas há mudanças em curso. “É tempo de mulheres”, disse ontem Claudia Sheinbaum, presidente do México, na abertura da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) na capital do país. No início deste mês, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu o direito ao cuidado como um direito humano autônomo, com ênfase para a questão reprodutiva. Isso significa que todos têm o direito de dar cuidados, receber cuidados e cuidar de si mesmos. O tribunal sublinhou que esse direito não pode ser totalmente exercido sem uma abordagem interseccional e estabeleceu a necessidade programática, de, por exemplo, assegurar a paridade remuneratória entre licença-maternidade e paternidade. Um marco. E o Brasil, pela primeira vez, inclui a questão racial em sua Política Nacional de Cuidados. É o único da região a incorporar ao enfoque interseccional a racialidade. Falta agora o Plano Nacional.
Representando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), integrei os debates na décima sexta edição do evento de mulheres da Cepal, que teve como tema central a economia do cuidado. Na Cidade do México, ouvi bastante, e, junto a delegação brasileira, articulamos uma posição regional comum para defender políticas públicas voltadas especialmente às mulheres e aos cuidados reprodutivos, em sintonia com a Corte Interamericana.
Mais: o Supremo Tribunal Federal (STF) e o CNJ acabam de lançar um repositório inédito com casos emblemáticos que fundamentam juridicamente o cuidado como direito fundamental. O marco foi a decisão de 2013, que flexibilizou o acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos em situação de vulnerabilidade. Vieram depois acórdãos essenciais sobre gestantes, saúde pública, combate às drogas, e a histórica substituição da prisão preventiva por domiciliar para mulheres grávidas, lactantes ou mães de crianças e pessoas com deficiência.
Ainda há lutas a travar. É preciso reconhecer o valor econômico do cuidado, investir na sua mensuração e no financiamento de ações estruturais. Cuidar é também advertir sobre perigos. O perigo está em manter as mulheres invisíveis em uma democracia. Como prosperar num país que nega o básico a quem sustenta a vida?
Uma sociedade que protege quem cuida é uma sociedade que cuida de si. Marciane merece isso. O Brasil também. Proteger quem cuida é, no fim, cuidar do Brasil.