Uma mulher chega em casa diariamente exausta. Cumpriu horas de uma jornada exaustiva, trabalhando como empregada doméstica na casa de uma família que não é a sua. Ao pisar em seu lar, não descansa: inicia a segunda jornada — os cuidados com os filhos, a alimentação, a organização do espaço, as urgências de todos. Seu companheiro, de comportamento tranquilo, é carinhoso. Mas ela é quem concentra todas as energias no bem-estar da casa. Ao tempo, surgem o ciúme, a possessividade, o controle. Até que, ao voltar do serviço, acompanhada dos filhos, após uma discussão, tem o corpo encharcado com solvente e, em seguida, perfurado por facadas. Foi o então ex-companheiro. Uma violência gravíssima que a deixou desfigurada e por pouco não a matou. Ele foi preso. Alegou, como tantos agressores, ciúmes. Essa é Marciane, mulher preta capixaba, hoje viva e incansável na luta contra a violência que sofreu.

Ela representa milhões de mulheres brasileiras que conciliam o trabalho formal, os afazeres domésticos e o cuidado com a família — e que, apesar de assumirem tantas frentes, seguem invisíveis para o Estado. Como é possível que quem cuida de todos não tenha garantido o direito de ser cuidada?

A raiz do problema é estrutural: homens com uma masculinidade vil, que naturalizam o domínio e a violência. Nosso Estado não se move por quem mais precisa. Em todo o mundo, as mulheres realizam 76,2% dos trabalhos de cuidado não remunerado, gastando 3,2 vezes mais tempo que os homens nessas tarefas de sustentação da vida (OIT). No Brasil, o cenário se agrava quando o fator racial se soma ao de gênero. As mulheres negras são as que mais trabalham e as que menos descansam, sem a devida atenção consigo.

O reconhecimento do cuidado como direito está profundamente vinculado à autonomia pessoal, ao desenvolvimento de projetos de vida e a uma existência digna, sem distinção de gênero, raça ou origem social. Não é possível separar essas questões. E a ausência de dados desagregados por gênero e raça compromete a criação de políticas públicas eficazes para redistribuir o cuidado. Sem dados, não há visibilidade, tampouco ação.

Mas há mudanças em curso. “É tempo de mulheres”, disse ontem Claudia Sheinbaum, presidente do México, na abertura da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) na capital do país. No início deste mês, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu o direito ao cuidado como um direito humano autônomo, com ênfase para a questão reprodutiva. Isso significa que todos têm o direito de dar cuidados, receber cuidados e cuidar de si mesmos. O tribunal sublinhou que esse direito não pode ser totalmente exercido sem uma abordagem interseccional e estabeleceu a necessidade programática, de, por exemplo, assegurar a paridade remuneratória entre licença-maternidade e paternidade.  Um marco. E o Brasil, pela primeira vez, inclui a questão racial em sua Política Nacional de Cuidados. É o único da região a incorporar ao enfoque interseccional a racialidade. Falta agora o Plano Nacional.

Representando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), integrei os debates na décima sexta edição do evento de mulheres da Cepal, que teve como tema central a economia do cuidado. Na Cidade do México, ouvi bastante, e, junto a delegação brasileira, articulamos uma posição regional comum para defender políticas públicas voltadas especialmente às mulheres e aos cuidados reprodutivos, em sintonia com a Corte Interamericana.

Mais: o Supremo Tribunal Federal (STF) e o CNJ acabam de lançar um repositório inédito com casos emblemáticos que fundamentam juridicamente o cuidado como direito fundamental. O marco foi a decisão de 2013, que flexibilizou o acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos em situação de vulnerabilidade. Vieram depois acórdãos essenciais sobre gestantes, saúde pública, combate às drogas, e a histórica substituição da prisão preventiva por domiciliar para mulheres grávidas, lactantes ou mães de crianças e pessoas com deficiência.

Ainda há lutas a travar. É preciso reconhecer o valor econômico do cuidado, investir na sua mensuração e no financiamento de ações estruturais. Cuidar é também advertir sobre perigos. O perigo está em manter as mulheres invisíveis em uma democracia. Como prosperar num país que nega o básico a quem sustenta a vida? 

Uma sociedade que protege quem cuida é uma sociedade que cuida de si. Marciane merece isso. O Brasil também. Proteger quem cuida é, no fim, cuidar do Brasil.